Não sei se já vos contei alguma vez esta história. Tive o cuidado de procurar nos arquivos mas acabei por não encontrar nenhuma referência anterior, pelo que ela aqui vai, tal como aconteceu há alguns anos.
Ao assistirmos entre nós a um conhecido festival de jazz, um velho amigo meu, desde sempre apaixonado pelo jazz mas em particular pelas correntes mainstream, após um concerto pelo trio do histórico e consensual Paul Motian, no qual a música tocada lhe pareceu cheia de “modernices”, virou-se para mim e sentenciou: “é pá! Não posso com isto! O problema é que eles sabem tocar... mas não querem!” Que é como quem diz: terá achado estranho, esse meu velho amigo, como era possível que Motian, por todos nós conhecido do genial trio clássico-moderno de Bill Evans, agora tocasse aquela música tão “puxada”... Ao que todos os que ouvimos tal desabafo nos desmanchámos a rir!
Apesar de em boa verdade não ter assistido ao concerto todo (mas permitindo-me adivinhar o que depois se seguiu, ao ouvir os testemunhos de inteira confiança de quem a ele assistiu até ao fim), o certo é que voltei a lembrar-me desta história ao aturar, penosamente, antes de “atirar a toalha” no final do terceiro número, aquele incessante matraquear de um drum’ n’ bass primário ou ao suportar os decibéis inflaccionados dos primeiros 40 minutos do concerto de Kenny Garrett com o seu quarteto – um dos grupos que preenchiam o cartaz da primeira parte do Guimarães Jazz deste ano – não porque algo de semelhante tenha acontecido em palco mas precisamente pelo contrário: o espectáculo de demagogia, fogo-de-vista técnico e exotismos fáceis que o saxofonista e seus pares exibiram perante o público presente na sua actuação de 14 de Novembro no Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor, sempre jogando com a falsa aparência de uma pretensa afirmação de identidade mas no fundo impondo a vulgata de uma música popular urbana de extracção comercial ou então de uma world music de gosto duvidoso.
Para além da obsessão binária de um baterista primário, da inexistência de um apagado e mecânico baixista e da indigência de um teclista básico à altura da encomenda, sem dúvida que em algumas passagens da actuação pessoal de Kenny Garrett se tornaram evidentes as excepcionais qualidades instrumentais e a fogosa emotividade de um saxofonista de primeiro plano (mas muito irregular trajecto) no jazz das últimas duas décadas e meia. Mas esses brevíssimos episódios mais pareciam fogachos involuntários em meio de uma estratégia de deliberada banalidade conceptual apenas destinada a arrancar fartos aplausos; uma estratégia condicionada pelos rodriguinhos de uma encenação em que pouco importou a Garrett o desbaratamento do seu grande talento. Por isso me lembrei da expressão daquele meu amigo, atrás citada, mas precisamente pelos motivos inversos.
Incomparavelmente transparente, sincera e traduzindo, sem golpes baixos, um momento de entertainment evocativo dos bons velhos tempos do Swing fora a actuação na véspera, a abrir o festival, de um grupo de músicos norte-americanos e europeus numa rara e partilhada homenagem à memória de Lionel Hampton, o primeiro grande vibrafonista da história do jazz, durante a qual foi crescendo a interacção dos vários músicos em palco, assim contagiando os espectadores da plateia na base de um ambiente de comunicação progressivamente genuíno.
Neste sentido, a presença comovente de um veterano como Red Holloway (sax-tenor), cujo som evocava o peso da História, o carinho e a admiração que lhe eram tributados (na própria compita da execução instrumental) por companheiros de naipe alemães, a par do som impetuoso de Frank Lacy (trombone) ou da espontânea exuberância histriónica de Jacey Falk (voz e apresentação) acompanharam a evolução de um repertório repleto de êxitos do passado.
Entre estes, foram emergindo velhos clássicos instrumentais de Hampton, como Hamp’s Boogie, Air Mail Special, Central Avenue Breakdown, Sweet Hearts on Parade ou Flying Home, com evidência solística para Red Holloway e Lottar van Staa (saxofones –tenores), Jesse Davis (sax–alto) ou Markus Bartelt (sax–barítono) e ainda Anders Bergkrantz e Ronald Baker (trompetes). Isto sem esquecer o balanço metronómico de Martin Giakonovsky (contrabaixo), a verosimilhança de Jason Marsalis (vibrafone) e a frescura e amplitude de uma voz feminina convidada – a italiana Roberta Gambarini, uma das mais talentosas cantoras europeias do momento – sensível e brilhante em Midnight Sun e Stardust e improvisando em desenvolto scat numa versão bem swingada de Sweet Georgia Brown.
Ainda antes de me deter naquele que já se tornou um dos mais impressionantes momentos de toda a história de 19 anos do Guimarães Jazz e dando um salto para o último concerto da primeira parte do festival, o jazz português contemporâneo não deixou, como sempre, de estar presente através do projecto T.O.A.P. (Tone of a Pitch) que esta editora independente portuguesa todos os anos assegura em co-produção com os responsáveis do evento e que, também anualmente, dá origem a um disco a lançar no ano seguinte.
Desta vez, subiram ao palco representantes maiores de várias gerações do nosso jazz moderno – Mário Laginha (piano e Fender Rhodes), André Fernandes (guitarra), Nelson Cascais (contrabaixo) e Marcos Cavaleiro (bateria) – ainda convidando um talentoso e habitual frequentador da cena portuguesa: o saxofonista britânico Julian Argüelles.
Propondo-nos um jazz contemporâneo marcado por grande abertura e invenção harmónica, sendo clara e identificável a personalidade própria das várias peças apresentadas, foram particularmente notadas a mobilidade rítmica e melódica de TOAPS (Laginha), a juvenilidade ornetteana e irrequieta de Trialty (Argüelles), o belíssimo recorte ternário de Mensagem ao Contrário (Cascais) ou as típicas revoadas melódicas, tão portuguesas, de Outra Gaveta (Laginha), embora, em geral, me tenha soado relativamente sombria e quiçá demasiado uniforme a atmosfera emocional subjacente ao concerto, com os músicos menos soltos do que em audições anteriores e ainda algo presos à partitura escrita.
Entretanto, o acontecimento transcendente do Guimarães Jazz 2010, tinha já ocorrido no sábado 13 de Novembro, com a actuação do (assim chamado) Saxophone Summitt de Ravi Coltrane, David Liebman e Joe Lovano, três saxofonistas (os últimos dos quais multi-instrumentistas) que formaram, em boa verdade, um sexteto uno e altamente coeso com o pianista Phil Markowitz, o contrabaixista Cecil McBee e o baterista Billy Hart, todos eles valores de primeiro plano e senhores de brilhantes carreiras no jazz norte-americano.
Ao contrário do que se esperava no Centro Cultural Vila Flor (e por certo na Culturgest, que co-produziu este excepcional concerto), foi uma verdadeira mas bem-aventurada surpresa a escolha de uma obra-prima de John Coltrane para preencher integralmente os concertos realizados pelo sexteto nessa noite em Guimarães e na noite seguinte em Lisboa – a suite Meditations gravada em 23 de Novembro de 1965, ou seja dois anos antes do seu prematuro desaparecimento, e que marcou uma última viragem num percurso criativo, riquíssimo e avassalador, que assim poderemos dividir:
– o período clássico-moderno (1955-1959), durante o qual foi o parceiro regular e de eleição de Miles Davis e episodicamente de Thelonius Monk, tendo culminado esta etapa estética com a edição de um álbum histórico em nome pessoal (Giant Steps, Maio, 1959);
– o período modal (1960-1965), iniciado com a gravação de My Favorite Things e que assistiu à formação do excepcional quarteto com McCoy Tyner (piano) e Elvin Jones (bateria) e se encerrou com a gravação de A Love Supreme, uma outra obra-prima;
– e o período dito espiritual (o de mais livre, extensa e radical utilização da improvisação), situado entre 1965 e 1967 (o ano da sua morte), não apenas pela sucessão de composições que Coltrane incluiu nos seus discos e actuações e que transportavam consigo títulos como Peace on Earth, Attaining, Amen, Joy ou Ascension, mas ainda pela própria postura ascética e transcendental do grande músico.
Após uma primeira experiência com parte do mesmo material (First Meditations, gravado em 02.09.65), os grupos de Coltrane viram a manutenção do recém-chegado Pharoah Sanders no segundo saxofone e, com a partida de McCoy Tyner e Elvin Jones, a substituição deste último por Rashied Ali. Foi esta formação instrumental de Coltrane que então viria a gravar (23.11.65) a versão definitiva da suite Meditations, subdividida nos seguintes quadros: The Father and The Son and The Holly Ghost; Compassion; Love; Consequences; e Serenity.
Sendo certo que estes títulos traduzem, sem margem para dúvidas, o carácter espiritual desta obra – confirmando, aliás, o pendor religioso da derradeira fase da carreira de John Coltrane, desde logo expresso nas liner notes que o saxofonista escrevera para a edição da já citada obra-prima anterior, A Love Supreme – a materialização musical de Meditations constitui uma eventual contradição com esse carácter, pelo choque por vezes patente entre a não-tonalidade das harmonias de McCoy Tyner e a liberdade melódica amplamente dissonante (mas, em muitos momentos, também modal) da improvisação de Coltrane e Pharoah. Mais ainda, o caos aleatório e a dureza sónica e tímbrica da gravação original resultante daquele encontro de Novembro, 1965, reforça sobremaneira o contraste entre o que, subjectivamente, esperaríamos de uma obra de génese espiritual e a violência tão terrena da música que a pretende evocar, um dos mais fascinantes e misteriosos aspectos de toda a peça.
A fabulosa versão que agora o Saxophone Summitt nos propôs em Guimarães (aquela a que tive a felicidade de assistir), não coarctando em nada a liberdade improvisativa individual de cada protagonista instrumental, pareceu reforçar o carácter espiritual e evocativo do seu Criador – John Coltrane – reforçando em várias passagens a linguagem tonal e de certo modo atenuando, aqui e ali, a já referida veemência sónica, sem que se perdesse, contudo, a fortíssima mensagem que nos foi proposta.
Sem dúvida em plano de destaque na direcção musical e na interpretação da mensagem deixada pelo grande músico, David Liebman fez um espantoso trabalho de descodificação desse legado, enquanto medium entre o sexteto e o ausente-sempre-presente Coltrane – mesmo no que toca à definição dos temas que, embora identificáveis formalmente no original, jamais terão sido vertidos, como tal, em partitura – tal como o fizeram os outros dois membros do Summitt, Ravi Coltrane e Joe Lovano, suficientemente “apagados” para que a música do Mestre se tornasse o que mais importava mas claramente à altura do evento na inteligência, personalidade própria e criatividade com que nos devolveram esta grande música, em rasgos individuais e colectivos por vezes esmagadores.
O mesmo sucedeu, aliás, com os restantes membros do sexteto, aos quais foram atribuídas intervenções substanciais nas mais ou menos prolongadas introduções de cada um dos quadros da suite, com Phil Markowitz deliberadamente nos antípodas de McCoy Tyner, Cecil McBee transmitindo com a sua ampla sonoridade coesão ao colectivo e Billy Hart influente e polivalente nas transformações de atmosfera que percorreram toda a obra.
Numa palavra, um dos momentos mais inesquecíveis em toda a história do Guimarães Jazz.
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Fotos: cortesia de A Oficina e © João Peixoto
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